domingo, 10 de dezembro de 2023



 BURRO PRETO, AMIGO “VÉIO”!

ST NICÁCIO (H Ge F - 1998)

O ano de 1998 ia pela metade. Eu servia no Hospital Geral de Fortaleza (Fortaleza-CE) e, certa manhã, bateu aquela saudade de atirar com um Para-FAL. Olhei para um lado e para o outro,m e só via corredores azulejados, eu com uma roupa branca de enfermagem. Em 10 minutinhos saiu esta poesia.

À Memória dos Combatentes de Selva ex-2º Sgt Inf Mário Abrahim da Silva (2ª Cia Fzo Sl/1º BIS), tombado no cumprimento do dever na madrugada de 28 Set 72 em Pavãozinho (sul do Pará) e ex-Sd R/1 Pedro Argileu da Silva (4ª Cia Fron - atual 4º BIS), falecido em conseqüência de moléstia contraída durante cumprimento de missão no sul do Pará (região de Xambioá - 1974).


“Enquanto os nossos mortos permanecerem em nossa memória, eles ainda estarão vivos!”

 

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo,

De te ouvir atirando, do teu ferrolho tinindo

Mais alto do que os tiros, que da tua boca saíam

E ver a poeira subindo, onde os teus tiros caíam!

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo!

 

E à noite, nas patrulhas, os companheiros dormindo,

O ouvido atento a tudo...as carapanãs zunindo...

Te abraçando ao meu peito, a tropa espalhada no chão;

Eu, sentinela da hora, vigiando a escuridão!

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo!

 

"Preparar para partir!" (que o sol já está subindo)

Mateiros à nossa frente, a tropa a trilha seguindo,

Mochila completa às costas, o Para-Fal carregado,

Cem cartuchos por homem, facão de mato afiado...

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo!

 

É meio-dia e, na selva, o ar parece parado;

Andando no pacoval, o patrulheiro, suado,

Lembra quem deixou em casa - cunhã, curumim sorrindo.

Pensa na sua missão, aumenta a marcha, apressado;

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo!

 

Na beira do igarapé, enchendo de água o chapéu,

Colocando-o na cabeça, a água no rosto caindo -

O refrigério que dá, parece que vem do céu! -

Refrescada a cabeça, prá frente a tropa seguindo...

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo!

E quando a patrulha pára, na selva a tarde caindo

Seringueiro já não canta, a quentura arrefecida;

Cozinheiro acende o fogo - Ah! O cheiro bom da comida!

Armar a rede de selva... sentinelas se postando...

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo!

 

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

 

Hoje, estou tão distante, doutro lado do Brasil

(não vejo a mira ajustada, apontando o meu fuzil):

Estou de branco, engomado, já não visto um rajado!

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo...

 

Em vez de fuzil, caneta; corredores azulados;

É bom servir a outros - pacientes, acamados,

Mas... lá dentro do peito, a saudade vou carpindo:

Burro preto, amigo véio, que saudade tô sentindo...

 

Daqui a pouco é a Reserva - descanso bem merecido

De quem cumpriu sua missão, nesse canto tão esquecido

Desta querida nação (que eu quero ver progredir)...

Burro preto, amigo véio, que saudade vou sentir!

 

 

GLOSSÁRIO

Burro preto: apelido jocoso que o FAL recebeu, devido seus coices durante o tiro.

carapanã: mosquito, muriçoca (bras. Amazônia).

pacoval: lugar cheio de pacovas (espécie de bananeira brava, nativa da Amazônia).

cunhã: mulher, esposa (bras. Amazônia, do idioma indígena).

curumim: filho (idem).

igarapé: pequeno rio, riacho, ribeirão (bras.Amazônia, do idioma indígena).

seringueiro: passarinho que canta o dia inteiro no alto das árvores, em terra firme; tem um canto bem característico (fú!- fí!- fíí! - fuí - fuíu!!).

O autor é subtenente Reformado, tendo como última OM na ativa o próprio H Ge F. Atualmente reside em Rio Branco (AC), onde é presbítero numa igreja local.